MPB NO CINEMA



O Globo, 27.04.99 / Segundo Caderno
O cinema brasileiro encontra na tela a música brasileira

Hugo Sukman

 
A propalada falta de memória brasileira cai por terra pelo menos quando o assunto é curta-metragem. Discreta e despretensiosamente, os cineastas aproveitaram o formatinho nos últimos 30 anos para documentar as grandes figuras do país. A mostra Curtas no Centro, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), prova isso a partir de hoje atacando de música popular, em dois programas que trazem oito curtas sobre cantores e compositores.

Há dois tipos de filme, o que documenta de fato e o que recria o universo criativo do artista. No primeiro caso, está "Nelson Cavaquinho" (1969), de Leon Hirszman, que mostra o compositor em seus hábitats naturais, o botequim e a Mangueira; Pixinguinha (1969), de João Carlos Horta, flagra o compositor em casa, falando da música e da vida; "Heitor dos Prazeres", (1965), de Antonio Carlos da Fontoura, mostra como o velho Rio influenciou músicas e quadros do artista; "Vinicius de Moraes" (1970), de Davi Neves com roteiro de Fernando Sabino, aborda a poesia e as letras de Vinicius; e "O cantor das multidões (1971), de Oswaldo Caldeira, vai atrás do sucesso de Orlando Silva nos anos 30 e 40.

Já no segundo caso, estão o reflexivo "Álbum de música" (1974), de Sérgio Sanz, um panorama da música popular brasileira até os anos 70; a sátira ao universo ítalo-paulistano de Adoniran Barbosa em "Ma che, bambina!" (1985), de Cecílio Neto, e um dia na vida de Noel Rosa em "Com que roupa?" (1996), de Ricardo Van Steen.



O Estado de São Paulo, 03.04.2005 / Caderno 2
A música brasileira é um placebo
Filmes recentes de Hollywood têm trilha com canções em português: seria coincidência?
Mauro Sérgio Conti

Closer - Mais perto, dirigido por Mike Nichols, conta os enlaces e desenlaces amorosos de dois casais. Além de ter a mesma temática, seu enredo é tão profundo quanto uma reportagem da revista Nova. É daqueles filmes de sair no meio, de tão pretensioso.

Be Cool - O Outro Nome do Jogo, de F. Gary Gray, é uma seqüência da comédia O Nome do Jogo. Além de continuação, é uma paródia. Em vez de satirizar Hollywood, o personagem vivido por John Travolta agora perambula pela indústria musical. A paródia adquire dimensões bocejantes quando Travolta e Uma Thurman, não sabendo bem o que fazer, reencenam a dança antológica de Pulp Fiction.

A Vida Aquática de Steve Zissou, de Wes Anderson, também é uma paródia. Bill Murray encarna um entediado Jacques Cousteau, o legendário desbravador do fundo do mar do velho seriado de televisão. (Legendário e picareta: os documentários do capitão francês eram encenadíssimos.) Aloprada, extravagante, a paródia é de rolar de rir.

Além de serem produções americanas recentes, os três filmes não têm nada a ver entre si. Mas há neles um elemento que percebemos de imediato, com um certo estranhamento: na trilha sonora dos três há músicas brasileiras, cantadas em português.

Mais perto tem Bebel Gilberto interpretando Samba da Bênção, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, e outras duas canções de sua autoria. O Outro Nome do Jogo traz Elis Regina cantando Roda, samba composto há 40 anos por Gilberto Gil. Em A Vida Aquática , a trilha sonora se apóia em Seu Jorge, que interpreta também um personagem chamado Pelé dos Santos (ator bissexto, o músico fez o maníaco Zé Galinha em Cidade de Deus ). Só que Seu Jorge, com um impagável jeitão songamonga, reinterpreta - e reinventa, e esculhamba, e nacionaliza - músicas de David Bowie dos anos 70. É um espanto.

Será coincidência, ou a música brasileira está tendo uma percepção maior no exterior? Para não parecer patriotada, vale ouvir John Travolta. O ator disse em Londres que, para ele, a música brasileira é a melhor do mundo.

Essa história da música brasileira ser a melhor do mundo não existe. Não existe porque nenhuma o é. O que existe é a disseminação de certas músicas nacionais no mercado internacional. Nesse aspecto, a música popular do Brasil tem boa aceitação desde que, como parte da aliança contra a Alemanha nazista, o governo americano e os estúdios Disney patrocinaram a divulgação d'Aquarela do Brasil.

Seu maior momento de presença internacional foi a bossa nova. Inventada por João Gilberto no início dos anos 60, ela foi também o momento mais fecundo, tendo sido interpretada por um sem-número de cantores e instrumentistas, de Frank Sinatra a Chet Baker. É a bossa nova que ecoa diretamente no canto intimista e preciso de Bebel Gilberto em Mais perto e, indiretamente, no esquema voz-e-violão de Seu Jorge em A Vida Aquática.

Quanto a Elis Regina cantando Roda em Mais perto, não há aproximação possível. Ela pertencia a outra família musical. Já Gilberto Gil, que nunca teve nada a ver com a bossa nova, foi expoente de um outro movimento musical, o tropicalismo.

O tropicalismo talvez forneça outra pista para tentar entender a aceitação internacional da música brasileira fora do País. É José Miguel Wisnik quem oferece a pista em Sem Receita, livro algo desordenado (tem ensaios, canções, entrevista, artigos), mas repleto de intuições iluminadoras e análises requintadas. Wisnik diz que a Europa e os Estados Unidos perceberam o tropicalismo com 30 anos de atraso graças à mundialização, que "fez cair a ficha, para o olhar externo, da extraordinária singularidade brasileira, que, na falta de outra coisa, sempre lidou de modo muito próprio com as diferenças. E lidar com diferenças de povos e culturas tornou-se, como sabemos, problema crucial e literalmente explosivo no mundo".

O tropicalismo preconizava a abertura da arte a influências díspares, do kitsch à vanguarda, das telúricas raízes brasileiras à vanguarda internacional, da arte erudita à cultura de massas, passando pela publicidade e a poesia concreta. A mistura, diziam os trovadores tropicalistas, tinha intenção crítica, já que submetia o que havia de arcaico no Brasil ao crivo do que seria ilustrado, civilizado e avançado mundo afora. Dito de outra forma: ao lidar com diferenças culturais, e sem esquecer que essas diferenças implicam exploração violenta, o tropicalismo, de uma forma singular, brasileira, tem correspondência com a nova desordem internacional.

Wisnik não o diz, mas parece que, com o enunciado "problema crucial e literalmente explosivo do mundo", ele se refere ao pós-11 de setembro, ao antagonismo entre os fundamentalismos evangélico e muçulmano, ao chamado choque entre o Ocidente e o Oriente. Indo um pouco adiante: a agudização da miséria mundial, a segregação progressivamente agressiva dos despossuídos pelos detentores da riqueza, bem como a regressão social propiciada pela alta tecnologia, teriam no tropicalismo, senão uma resposta estética, pelo menos um possível mosaico de imagens.

Foi a mundialização, diz Wisnik, que "fez cair a ficha". Talvez a ficha tenha caído mais fundo. Talvez nem exista mais ficha: os orelhões estão dando lugar aos celulares e o tropicalismo chegou à Europa e aos Estados Unidos quando, internamente, já tinha virado adorno, figura acadêmica de estilo. E agora, noutra pirueta, ganhou nova configuração porque um de seus arautos, Gilberto Gil, chegou ao poder.

Lula entendeu isso com precisão. É o próprio Gil quem conta que, ao convidá-lo para o Ministério da Cultura, o presidente lhe disse que o queria "de trancinhas". Queria, pois, além de um adereço de prestígio ao governo, um ícone - do sestro musical brasileiro, da integração racial, da abertura ao novo, do caráter popular do governo, da convivência de fundas tradições nacionais com a moda pop planetária.

Investido de poder político, Gil conformou-se a ele. No seu primeiro disco tropicalista, ele aparecia na capa com um jaquetão da Academia Brasileira de Letras. Como ministro, adotou sem nenhuma ironia os ternos pretos Armani que servem de uniforme para executivos que se querem na última moda. Gil, que satirizava o Brasil dos jaquetões, agora deve trocar receitas de tintura de cabelo com José Sarney. Logo, logo, estará cabalando votos para a Academia.

Com a bênção do presidente, continua dando shows, o que revela a concepção tropicalista do governo sobre a separação do público e do privado. São shows de fazer inveja a Sargentelli, no que diz respeito à folclorização, à cafonice, à comemoração ribombante do Brasil Casa-Grande-Senzala. Há duas semanas, acompanhado de passistas e batuques, Gil se exibiu no Baile da Rosa, do Principado de Mônaco. Cantou e encantou: fez a delícia da família Rainieri, de uma fatia bem fornida da nobreza européia e de um delicioso grupinho de grã-finos. Foi um show sem ironias.

Gilberto Gil também mantém o timbre crítico quando discursa. Numa entrevista ao L'Expressmag, saiu-se com essa: "Nós (brasileiros) vivemos um pouco como pobres felizes, e às vezes sentimos a Europa como um continente de ricos tristes." Como era mesmo a música? "Quem mora lá no morro vive pertinho do céu."

Ironia há em reencontrar o Gil pré-tropicalista em Mais perto, quando Elis canta: "Seu moço tenha cuidado com sua exploração/ senão lhe dou de presente a sua cova no chão." Para as platéias estrangeiras, esses versos de Gilberto Gil não querem dizer nada, pois são cantados em português. Para os brasileiros, servem de constatação que o Brasil continua o mesmo. Para ambos, pouco importa: a batida de Roda é legal, amena. Como diria Wisnik, a música brasileira segue sendo uma droga - que às vezes é remédio e noutras, veneno - mas no cinema americano está mais com jeito de placebo.